FRESTA
Carlito Azevedo
Poet
2019
Antes de tudo, é belíssimo este livro.
Rilke já dizia que o belo é apenas o começo do terrível.
Por isso o belo desse livro já começa falando de desmonte.
Sob o signo do desmonte, quatro vozes se erguem de dentro do desmonte de tudo, do país, do mundo, da vida, para cantar. Troianas livres.
E o que sobra após o desmonte? Sobra o exílio? Também de tudo? Do vermelho do sangue ao vermelho das maçãs?
Sobre a boca? Sobram as bocas, quatro, que de seus quatro pontos cardeais cantam a desimportância que sobrou? A esperança posta na grelha do churrasquinho da esquina? O vagar entre muros?
Sobra o tempo de fazer a mala, quase vazia, ao entardecer (entre lobo e cão), deixando para trás Atenas e as flores?
Resta saber-se nômade, pária, entre oásis e lavabo, entre deserto e fake?
Neste tempo danificado, quatro vozes surgem e seguem cantando, identificadas e não-identificadas. Pelo menos até o paratexto do sumário, onde o nome das autoras, quatro das melhores e mais vivas poetas do nosso estranho presente, reaparecem mais para que se retome o jogo, se refaçam os passos, do que para tomar posse do dito, que este já foi dito, distribuído, ofertado.
E cantam o quê?
O amor feito e desfeito, a vaca sem sino, a vida e o matador da vida, o homem pegando fogo, a moça pegando um sapato, a flor e a náusea, como já dizia Drummond. Os diferentes sotaques do desamparo. O latifúndio-vida e a linguagem com que grafá-lo.
Cantam o mundo e os muros. Muros que são ora segregação, ora escora, esteio, guarida. Mas sempre mais valiosos quando fresta. Por isso talvez os poemas das quatro poetas não sejam, a princípio, separados pelo muro da autoria. Em vez do livro murado em quatro partes, segregando, opta-se pelo enviesado do risco. Risco de ser tomada pela outra, ser, por um segundo, a outra, a possibilidade de “outramento”.
Não foi pouca emoção ler este livro. Um dos melhores da safra recente. Pelo que diz e pelo que faz. Nele há o real da guimba do cigarro, do bilhete molhado de chuva e o real dos sonhos, das sempre equívocas memórias, o real desejo de futuro. Há invenção e experimentação neste livro. Inventar uma linguagem é criar uma nova forma de vida. Quanta vida nestes poemas.
Raros livros ousam criticar tão fundo, de dedo em riste, a vida, e, ao mesmo tempo, amá-la tanto. Denunciamos porque amamos. Que os fluxos vitais, todos, sejam liberados pelas frestas. Pois só ela importa, a vida: essa fonte estranha de onde brotam Bach e sabonete Johnson, mosquitos e Ella Fitzgerald, Aristóteles e as rosas.
E a alegria. Também. Por que não?
Pois além de ser o começo do terrível, o belo é também “promessa de felicidade” (Stendhal).
Preface of FRESTA poem book | Prefácio do livro de poemas FRESTA . Editora 7LETRAS . RJ . 2019