INTERIORIDADES
Kátia Canton
Curator
2007
[ synopsis ]
Márcia Clayton fala do tempo, da sexualidade e da condição feminina através de instrumentos mundanos, utilizados para conter e domesticar seus fluxos: tampões, absorventes, preservativos, próteses que avolumam os seios, linhas de costura de uma cesariana.
A artista escancara objetos que revelam os mecanismos da pulsão da vida orgânica. Mas ao contrário de fazê-lo através de uma visceralidade abjeta, particularmente presente na produção artística dos anos 90, os apresenta de forma organizada, obsessivamente bela.
De fato, é no contraste entre a vida bruta do corpo e as cuidadosas estratégias construtivas, que brota o estranhamento necessário para se deparar com o trabalho de Márcia Clayton. Herdeiras de um minimalismo que institui a seriação de formas, as obras combinam assuntos entranhados de carne e de sangue com o cuidado repetitivo de uma sequência de mantras. Comprovam que a beleza tem sua eficácia na potência de uma obra de arte.
Absorventes viram estamparias quadriculadas e coloridas, onde os ciclos menstruais são numerados. Tampões se acumulam, formando um cinturão branco onde o título, BASTA!, alude simultaneamente a um final, tanto do ciclo reprodutivo quanto da violência urbana.
Formas siliconizadas tornam-se sutiãs adesivos que, no corpo, se disfarçarão em bustos volumosos, perpetuando noções aceitas de feminilidade e sensualidade. Num sentido contrário a essa expectativa, porém, os volumes-seios no trabalho se tornam porta-retratos de imagens de seus dois filhos. Repetidas continuamente, essas imagens se configuram em padronagens e em lembranças de funções vitais correspondentes à amamentação, à nutrição, ao crescimento.
Contrariamente às dimensões apresentadas, é na minúscula tela de um iPod que o observador entra em contato com o grande espetáculo da interioridade: a gestação, o nascimento, e o posterior fechamento do corpo através da costura. Misturando a figura de uma boneca, que se integra a imagens verídicas de um parto, NEST emblematiza o ninho do útero materno que gera e acolhe a vida.
A linha que costura e fecha o ventre e perpetua a continuidade da vida se estende para pequenas superfícies brancas e desemboca em outras linhas e bordados. Numa sequência de frases costuradas sobre quadros brancos, acompanhadas de sua tradução em braile, a artista tece alusões aos sentidos. São obras feitas numa parceira afetiva com outra personagem feminina, deficiente visual. A artista empresta seus olhos à outra que lhe empresta o tato. Os sentidos se transpõem, se misturam, reafirmam as intricadas consequências da natureza da vida e da condição do feminino.
São obras que se transvestem de um olhar na tela escura e infinita da subjetividade. Têm sentimento e toque.
Text for the solo exhibition | Texto para a mostra individual . INTERIORIDADES . Galeria C.C. Cândido Mendes . RJ . 04|2007